A indústria pornográfica na internet fatura bilhões de dólares por ano, mas os grandes beneficiários são os produtores, e não os atores que se expõem para a câmera.Mia Khalifa atuou em filmes pornô por um período curto no fim de 2014.Ela conquistou fama mundial quando apareceu em um vídeo usando um hijab (véu usado por algumas mulheres muçulmanas para cobrir a cabeça). A cena pornográfica causou furor, e Mia chegou a receber ameaças do grupo extremista Estado Islâmico (IS).Atualmente, ela tem 16 milhões de seguidores no Instagram, e uma rápida busca por seu nome no Google traz milhares de resultados.
Mas, Mia Khalifa não se orgulha da sua fama mundial.
Depois de anos de ameaças, a ex-atriz começou a falar abertamente sobre o seu passado.
Mas o que a história de Mia revela sobre a indústria pornográfica e a cultura do século 21? Nessa semana, ela respondeu a essas perguntas em uma entrevista ao programa HARDtalk da BBC.
BBC - Em muitos sentidos, você é uma mulher muito famosa. Mas a origem da sua fama foi a sua breve passagem pela indústria pornô. É difícil lidar com isso?
Mia Khalifa - Com certeza. Depois de sair (da indústria), minha conta no Instagram foi hackeada por apoiadores do Estado Islâmico, que postaram propaganda em todos os lugares. Então, o Instagram deletou e eu não fiz uma nova conta até um ano depois, quando decidi aceitar meu destino como a "infame" estrela pornô e tentar mudar a narrativa.
Então, criei uma conta no Instagram novamente e tentei, na ausência de um termo melhor, me tornar uma influencer.
BBC - Se a gente buscar seu nome no Google, aparecem vários links para vídeos pornográficos. As palavras "porn star" (estrela pornô) aparecem imediatamente. Isso é algo que você nunca vai superar?
Khalifa - Estou tentando. Eu não me dou muito bem com o Google, e estamos tentando mudar isso.
A primeira coisa que aparece é um site sobre o qual não tenho controle, mas que está escrito na primeira pessoa, como se fosse meu. E na Wikipedia esse site é descrito na minha página como se fosse o meu site oficial. Tentamos inúmeras vezes eliminá-lo, mesmo com ações legais, mas a empresa não nos atende. E fizemos inúmeras propostas.
BBC - Você deixou o Líbano rumo aos EUA com seus país ainda menina e foi criada lá. É um obviamente uma mulher inteligente, cursou história numa universidade no Texas. Como foi que entrou na indústria pornô?
Não acredito que baixa autoestima discrimine ninguém.
Importa se você vem de uma boa família ou se vem de um ambiente não tão bom? Eu lutei toda a minha infância contra o excesso de peso e nunca me senti atraente ou digna de atenção masculina.
E, de repente, no meu primeiro ano de faculdade, comecei a perder muito peso fazendo pequenas mudanças. Quando me formei, estava pronta para fazer a diferença. Eu sentia muita vergonha dos meus seios, porque foram a primeira coisa que perdi ao emagrecer quase 23 quilos.
Então, minha maior insegurança eram os meus seios e queria recuperá-los. Quando fiz isso (Khalifa passou por uma cirurgia plástica), comecei a chamar muita atenção dos homens e nunca me acostumei com isso. Sentia que, a menos que me apegasse a isso e cumprisse as expectativas que tinham de mim, seria insignificante.
E depois de conquistar essa aprovação e os elogios, eu não queria mais perder isso.
BBC - Você era uma jovem graduada que buscava emprego quando um garoto na rua te convidou para trabalhar com ele. Ele foi sincero e disse que estava no ramo da pornografia. O que fez você se atrair por esta proposta?
Khalifa - Não foi assim que aconteceu. Não foi: "Ei, você quer entrar no pornô?". Foi algo mais como: "Você é linda, gostaria de fazer uns trabalhos como modelo? Bem, é que você tem um corpo lindo."
Mais tarde, quando fui ao estúdio, encontrei um lugar muito respeitável, magnífico, em Miami, Flórida (EUA). Era limpo. Todo mundo que trabalhava lá era simpático. Todos os quartos eram decorados com fotos de família. Como se não fosse nada duvidoso ou que me deixasse desconfortável.
Não filmei na primeira vez que entrei lá. Só na segunda. Na primeira, foi mais assinar a papelada, etc.
BBC - Agora, você está com 26 anos, mas tudo isso aconteceu quando você tinha 21. Como você vê aquela garota de 21 anos hoje? Acha que ela foi usada? Foi uma vítima?
Khalifa -Sinto que aquela menina não tinha sido preparada para perceber que estavam se aproveitando dela e que o que lhe diziam eram mentiras. Talvez, nem fosse mentira, mas uma tentativa de me manipular para que fizesse o que queriam.
Eu realmente não me vejo como uma vítima. Eu não gosto dessa palavra. Tomei minhas próprias decisões, apesar de terem sido decisões terríveis. Acho que é preciso mudar a forma de se abordar mulheres, mesmo em uma simples aproximação.
BBC - Você disse recentemente que experimentava uma espécie de "bloqueio" quando se apresentava em cenas sexuais, que realmente não consegue se lembrar muito bem de muitas das coisas que fez. Tente me explicar o que passava pela sua cabeça quando você estava naquelas situações.
Khalifa - Acho que a palavra que não consegui encontrar quando disse isso era, na verdade, "adrenalina". Minha adrenalina estava tão alta, porque sabia que estava fazendo algo muito além do que imaginava ser jamais faria. Então, a adrenalina ainda dificulta olhar para trás e me lembrar exatamente do que pensava.
BBC - Sua origem cultural é árabe, que é profundamente conservadora, em geral. Você acha que precisou se despir de um camada a mais ao entrar neste negócio?
Khalifa - Provavelmente. Acho que parte disso também foi uma rebelião: querer fazer algo tão fora dos limites e do normal que até eu mesma me surpreendi.
BBC -Até acho que essa seja uma pergunta muito tola, mas sua família obviamente não tinha ideia do que você fazia, não é?
Khalifa - Não. E sim, me repudiaram quando descobriram.
BBC - Deve ter sido terrivelmente difícil.
Khalifa - Eu me senti completamente isolada, não apenas pelo mundo, mas também pela família e pelas pessoas ao meu redor. Principalmente depois de sair (da indústria), quando ainda estava sozinha. E quero dizer que percebi que alguns erros são imperdoáveis.
Mas o tempo cura todas as feridas, e as coisas estão melhorando agora.
BBC - Te pagaram US$ 12.000 (R$ 49.500) por um total de seis vídeos. Mas você gerou milhões e milhões de dólares tanto para a Bang Bros, a empresa com a qual trabalhou, quanto para o site PornHub. Como isso é possível?
Khalifa -As coisas são assim mesmo. Não sou a única. Não é que eu tivesse um contrato terrível ou um agente terrível.
BBC - E você tinha 21 anos, estava saindo da adolescência.
Khalifa -O cérebro humano não se desenvolve completamente até os 25 anos. Então, a parte da tomada de decisões do meu cérebro ainda precisava de treinamento. Não havia ninguém para me dizer o que fazer.
BBC - Você se tornou a estrela número um neste negócio. Você não tinha royalties ou direito a algum tipo de bônus por sua popularidade?
Khalifa - Nenhum. Nada mesmo.
BBC - No vídeo do hijab, o mais popular, três jovens participam. Você era uma delas e usava um véu islâmico. Você devia saber como isso seria considerado provocador.
Khalifa -Disse a eles, literalmente, que me matariam.
BBC - Por que você não se recusou a fazer a cena?
Khalifa -Intimidação. Estava assustada. Ninguém te força a fazer sexo, mas eu ainda estava com medo.
Você já se sentiu sem graça de reclamar quando o prato vem errado no restaurante, e o garçom te pergunta "está tudo bem"? Fiquei intimidada, estava nervosa.
BBC - Você diz que o conceito de consentimento não faz sentido na dinâmica do poder entre os homens que controlam a indústria pornográfica e uma jovem atriz de 21 anos como você.
Khalifa -Com certeza. Quando há quatro produtores brancos na sala, e você diz por exemplo alguma coisa que faz todo mundo rir, é horrível. Você não quer mais abrir a boca.
É a mesmo coisa quando você assina o contrato: você conhece os executivos, eles estão na sala esperando que você leia e assine, e você não entende nada do que está escrito, porque você está muito nervosa.
BBC - Quando você deixou o estúdio, depois daquela filmagem em especial, percebeu que seria um desastre para você?
Khalifa - A ficha não caiu até o dia seguinte, porque a adrenalina ainda estava muito alta.
Mas, logo depois do lançamento, meu mundo inteiro ruiu.
O que tinha me levado a fazer pornô era achar que ninguém descobriria. Tem milhões de garotas que se filmam fazendo sexo e coisas assim, e ninguém sabe o nome delas. Ninguém sabe quem são. Eu achei que pudesse fazer do pornô o meu segredinho sacana, mas o tiro saiu pela culatra.
BBC - Do ponto de vista dos produtores e distribuidores, foi um sucesso.
Khalifa - Eles disseram que eu fui um fenômeno raro.
BBC - A realidade é que seu rosto ficou conhecido em todo o mundo como a estrela pornô que usou hijab e passou a sofrer ameaças.
Khalifa - Ah, sim. Não falo do Estado Islâmico, porque não acredito que quem está profundamente envolvido com o EI tenha uma conta no Twitter. Eles puseram uma foto minha sobre a imagem de alguém decapitado e disseram... Não lembro exatamente o que disseram. Mas era algo sobre eu ser a próxima.
BBC -Não dá para imaginar como você se sentiu sozinha naquele momento, porque você não podia conversar isso com sua família.
Khalifa - Não. Foi assustador. Mas usei o humor como mecanismo de defesa. A minha resposta foi: "Tudo bem, desde que você não corte meus peitos... Eles custaram muito dinheiro".
BBC - Você tinha 21 anos. Cinco anos depois, qual você acha que foi a sua responsabilidade pessoal nessa história?
Khalifa -100%. Eu tomei a decisão. Claro que a indústria é imperfeita e devemos fazer algo para proteger outras garotas para que elas não caiam na mesma armadilha que eu. Mas foi minha escolha.
BBC - Sair do setor quando o vídeo viralizou, quando você recebeu ameaças... Isso foi uma decisão muito rápida para você?
Khalifa - Não diria muito rápida, porque ainda estava nervosa. Não sabia como reagir.
Um mês depois, convoquei uma reunião com todo mundo e tinha uma cópia da carta de missão para cada um. Falei para eles o que estava sentindo.
Eles tentaram me convencer a ficar e me disseram que a poeira iria baixar, que eu estava exagerando, inclusive sobre o perigo que corria...
BBC - Então, esses caras viam você meramente como uma verdadeira máquina de dinheiro.
Khalifa -Com certeza.
BBC - Você acha que sofre algum tipo de estresse pós-traumático após essa experiência?
Khalifa -Sim. Acho que acontece principalmente quando saio na rua, porque sinto como se as pessoas pudessem ver através da minha roupa e me sinto profundamente envergonhada. Tenho a sensação de que perdi direito a toda a minha privacidade. E perdi, porque estou a um clique de distância no Google.
BBC - Você não tem o direito de excluir as imagens, mesmo que sejam muito íntimas para você. Deve ser muito difícil.
Khalifa -É.
BBC - Esta história é a sua história. Mas, francamente, também deve ser a história de outros atores e atrizes pornôs.
Khalifa -Sinceramente, comecei a perceber isso recentemente. As pessoas começaram a falar comigo. Meu agente lê todos os e-mails e quando recebemos coisas assim, ele separa e os envia para mim.
Lendo as palavras de algumas dessas garotas que foram traficadas e forçadas a fazer pornografia, todas essas histórias de garotas cujas vidas foram arruinadas (...) me fazem sentir que foi bom começar a conversar e dar essa entrevista.
BBC - Há uma linha de pensamento que diz que, em muitos países, os jovens estão tão expostos à pornografia que isto está mudando a maneira como homens e mulheres se relacionam.
Khalifa - Claro que afeta relacionamentos. O vício em pornografia é muito frequente. As coisas que os homens vêem nos vídeos são esperadas das mulheres em suas vidas, e essa não é a realidade. Ninguém vai ser tão perfeito, ninguém fará esses atos em uma quarta-feira à noite.
BBC - Se você pudesse conversar com aquela garota de 21 anos, Mia Khalifa, andando pela rua na Flórida e parada pelo garoto que disse "Você é linda, podemos trabalhar juntos"... O que diria a ela?
Khalifa -É para isso que você carrega um spray de pimenta na bolsa. Use-o. Corra!